domingo, outubro 19, 2008

Conto: Quero ser herói!

Apesar do tamanho, o que não chegava a ser um estorvo, Gustavo era um menino esperto. Diferentemente de muitos meninos da sua idade, ele já sabia amarrar seus cadarços sozinho. E tinha um sério problema com quem o chamasse de Gu. “Não só Gu!”, dizia ele contrariado, “Sou Gu com mais duas sílabas e um s no meio!”.
Uma bela manhã, nosso menino esperto acordou sonolento, levantou da cama e foi direto para o banheiro, como fazia todos os dias. Depois de ter escovado os dentes e molhado o rosto, ele despertou de verdade e olhou-se bem no espelho. Seus olhos o encararam de volta e uma idéia estalou na sua cabeça como uma faísca junto com um enorme sorriso: quero ser herói! Ele vestiu o uniforme totalmente errado e correu até a cozinha, onde seu pai tomava café da manhã:
- Paiê! Quero ser herói!
- Que bom, filho. – disse o pai sem tirar os olhos do noticiário da manhã que passava na TV – Senta e toma o seu leite ou vamos nos atrasar de novo.
Sem escolha, Gustavo sentou-se na mesa, cerrando os dentes com força para pensar na primeira importante decisão que tomou nesses seus sete anos de vida. Sua mãe trouxe o pão colocando-o na frente dele e sentou-se ao seu lado. Sorrindo, ele anunciou estufando o peito com um ar solene, como se o que fosse dizer faria qualquer mãe desmaiar de orgulho:
- Mãe, quero ser...
- Escovou os dentes?
- Sim. – ele mostrou os dentes agora cheios de pão – Mãe, quero ser herói!
- Não fala de boca cheia, Gustavo. Não é bonito ficar mostrando comida mastigada para as pessoas.
- Desculpa, mãe, mas é que eu...
- O que eu acabei de dizer? Olhe só essa camiseta! Será que eu tenho que começar a vestir você de novo como se fosse um bebezinho?
Terminou o café e não conseguiu contar para o pai e a mãe o que queria. Mas quando voltasse da escola eles com certeza não estariam tão concentrados e o deixariam falar. E com certeza na escola todos ficariam tão animados que iriam chamar seus pais para lhes darem os parabéns. “Imaginem só! Um herói em nossa tão simples e quase não conhecida escola!”, ele já ouvia a professora dizendo para os seus colegas. A Juju iria até desmaiar, como acontecem com as meninas bonitas nos filmes.
Ao chegar animado na escola, logo encontrou Joy, seu amigo desde que ele nem sabia o que era amigo.
- Cara, - começou Gustavo carregando a voz para parecer um menino mais velho, como eles sempre faziam – Eu vou ser herói!
- Serio?! Irado, meu! Eu posso ser também?
- Não sei... É muito difícil, sabe. Nem todo mundo consegue. Primeiro você precisa fazer um treinamento super avançado em um quartel-general secreto. Daí uns carinhas de óculos pretos treinam você por um tempo e depois te mandam para um planeta deserto onde só moram alienígenas selvagens do futuro. Daí você tem que derrotar todos eles em uma luta de espadas que soltam umas luzinhas muito fera. Quando você ganhar, os carinhas de óculos pretos te deixam voltar para a Terra. Mas você está tão cansado que não consegue mais ficar de pé e dorme. Daí eles te levam de volta para casa e colocam um “xip” na sua cabeça para você não lembrar de nada e quando você acorda já um herói!
- E você fez tudo isso, cara?
- Fiz, tudinho. Só que eu não lembro porque colocaram um “xip” na minha cabeça...
- Uau! Eu quero ter um “xip” na cabeça também! Ei, Paulinho! Já ouviu o que o Gustavo fez? Ele é um herói!
- Como assim? – perguntou Paulinho desconfiado entrando na conversa.
E logo a roda estava gigantesca, e mais relatos de heróis com “xips” na cabeça começaram a aparecer. Havia mais heróis na escola do que ele poderia imaginar. Até uma menininha loira de trancinhas, que vivia com o nariz vermelho e escorrendo, confessou que fizera o treinamento. E falou também que o seu funga-funga permanente era devido a um pó venenoso que um alienígena tinha jogado no seu rosto, como última tentativa de derrota-la.
Gustavo ficou surpreso e feliz. Com tantos heróis treinados assim, eles poderiam transformar a escola em um esconderijo secreto deles. Ele deu essa idéia para os colegas e ela foi bem aceita. Então o próximo passo seria escolherem um nome adequado e à altura de heróis tão valorosos.
- Que tal Heróis Mandam? – sugeriu Joy.
- Não. – Gustavo fez uma careta – Heróis não mandam. Heróis salvam as pessoas.
- E que tal Corinthians Heróis Clube? – sugeriu o Bruno.
- Gostei desse! – disse a Ana.
- Não! – reclamou o Joãozinho indignado – Palmeiras Heróis Clube!
- SANTOS HERÓIS CLUBE! – berrou o Quico lá do fundo.
- Sem essa! – discordou Fabinho – Se é para ser um nome legal tem que ser Grêmio Heróis Clube!
- Que tal Meninas Super Poderosas? – disse Juju.
- Argh! – foi a exclamação geral dos meninos.
- Melhor do que nome de time! – emburrou-se a menina.
- Se não gostar do nome pode ficar de fora. – falou Joy para ela encolhendo os ombros.
- Todo mundo tem direito de dar uma sugestão! – protestou Flavinha.
E depois disso foi um bate-boca tão grande, com cada um tentando falar e fazer-se ouvido, que a professora apareceu no pátio e pôs um fim na algazarra.
- Muito bem. – falou ela quando todos se acalmaram e formaram uma fila indiana como ela havia mandado – O que está acontecendo aqui?
Mais uma vez todos tentaram falar ao mesmo tempo, mas a professora foi rápida e os cortou antes que os motorzinhos de suas línguas voltassem a funcionar.
- Um de cada vez, por favor!... Juju?
- Eles não querem que o nome seja Meninas Super Poderosas! – disse ela cruzando os braços e fazendo beicinho.
- Nome do quê? – perguntou a professora sem entender.
- Do nosso...
- Não pode falar, Juju! – cortou Joy – É secreto, lembra!
- Ah, é mesmo! Desculpa, professora. – pediu ela olhando para o chão.
Depois de Joy ter lembrado da situação do esconderijo deles, ninguém mais disse nada. Não queriam ser expulsos logo no primeiro dia, antes mesmo de escolherem um nome. Sem obter sucesso com o interrogatório, a professora foi obrigada a desistir e mandar que todos fossem para a sala. Quando todos estavam em seus respectivos lugares, ela anunciou que a aula daquele dia seria sobre vertebrados. E foi nesse instante que outra idéia pipocou na cabeça de Gustavo:
- Vertebrados Heróis Clube. – disse ele para o restante da sala em tom de ponto final.
- Não Gustavo, vertebrados são... – e a professora continuou sem perceber que todos os seus alunos entravam em um consenso sobre o nome do mais novo esconderijo de heróis.
E mesmo depois de eles ficarem mais ou menos interados do que aquela palavra queria dizer, não desistiram dela. O próximo passo seria um símbolo para distingui-los dos muitos outros esconderijos de heróis. E essa questão foi resolvida sem pestanejar, com um desenho lindamente mal feito da professora para explicar o que eram “ossinhos da coluna”. O que mais faltava agora? Ah, sim! Eles tinham que parecer heróis. Onde já se viu um herói sem máscara e roupas bem coloridas e estranhas?
Assim, na hora do recreio, Joy e Gustavo entraram escondidos na sala da pré-escola e pegaram as tintas não tóxicas usadas para fazer gatinhos e borboletas no rosto de crianças bem comportadas. Então todos passaram a desfilar pelo pátio com tinta por todo o rosto (das mais variadas formas e cores) e também no uniforme. Para o espanto e desespero da professora, que foi chamada pela diretora logo em seguida. Quando eles voltaram para a sala de aula, a professora pediu quem tinha pegado as tintas, mas ninguém rogou a autoria de tal façanha. E não entregariam seus fundadores, isso seria totalmente anti-heróico. Iria contra as regras de conduta de um herói do Vertebrados Heróis Clube! E quando foram feitas as regras? Não foram feitas, oras! Eles haviam feito o treinamento e tinham “xips” na cabeça, eram heróis, sabiam de tudo. Deviam cumprir as regras e lutar até o fim para defendê-las.
Aula de matemática depois do intervalo? A professora até que queria e, para falar a verdade, era o que ela tinha planejado. Mas nem que ela se vestisse de foca e fosse tocar trombetas em frente ao quadro, conseguiria alguma atenção dos seus alunos. Cansada de tentativas frustradas, ela sentou na sua mesa e olhou severamente para a turma, sem dizer uma palavra. Logo os murmúrios e os sussurros foram diminuindo, conforme as crianças entendiam o que estava acontecendo.
- Eu exijo saber o que está acontecendo com vocês hoje. – disse ela, por fim, depois de um grande suspiro cansado.
Mudos, silenciosos e procurando nem respirar, os integrantes do Vertebrados Heróis Clube trocaram olhares significativos. O que fazer agora? Será que a professora deveria saber que ela estava em um esconderijo secreto? Que a qualquer furacão, qualquer terremoto, qualquer meteoro que passasse pelos céus seria um sinal verde para que eles fossem convocados para salvar pessoas?... Poderia ser perigoso para ela. Inimigos a usariam contra os Vertebrados. O jeito foi permanecerem calados e olhando inocentemente para ela, até que desistisse e continuasse a aula.
Quando chegou a hora de voltarem para casa, Joy sugeriu que não deveriam contar nem para os pais, nem para irmãos mais velhos. Mesmo se eles fossem legais! Para terem certeza de que todos obedeceriam, resolveram fazer um juramento. Deram-se as mãos, formando um círculo e Gustavo os conduziu:
- E juro... que nunca vou... contar para... ninguém o... nosso segredo... que... nunca vou lembrar... dos alienígenas... do treinamento... dos “xips”... e dos carinhas de óculos pretos... diante de alguém... que não... seja... do Vertebrados Heróis Clube... Juro... defender o meu... planeta... dos invasores... ser uma pessoa boa... obedecer meus pais... quando eles merecerem... não deixar a professora louca... dividir meu lanche... não revelar a... identidade secreta... não maltratar os animais... tomar banho... e nunca... jamais... comer verdura... Amém.
Já em casa, Gustavo inventou uma desculpa pelo uniforme, o rosto e as mãos manchados de tinta para a mãe. Como não podia revelar nada para ela, passou a tarde inteira planejando como faria para ser um herói sem os pais saberem e como não atrasar suas tarefas entre um salvamento e outro. Como ele iria falar com os repórteres depois de salvar o mundo e em quais programas de TV ele iria aparecer. Como seria o seu super carro de herói e qual seria o seu super nome de herói. No final da tarde já havia decidido que era o Mega Menino da casa amarela que soltava raios mortíferos pelos olhos e que seu carro teria quarenta rodas. A mãe o chamou para jantar e ele escondeu todos os desenhos e rabiscos dos esquemas que tinha feito em baixo da cama. E de noite, tinha decido fingir que estava dormindo, mas na verdade estaria alerta esperando qualquer chamado urgente que recebesse. Essa era outra decisão sua: não dormir mais. Durante a noite seria Mega Menino, não Gustavo. Mas, antes mesmo da sua cabeça tocar o travesseiro, ele apagou e roncou alto até o dia clarear.
Na manhã seguinte, nosso menino esperto acordou sonolento, levantou da cama e foi direto para o banheiro, como fazia todos os dias. Depois de ter escovado os dentes e molhado o rosto, ele despertou de verdade e olhou-se bem no espelho. Seus olhos o encararam de volta e uma idéia estalou na sua cabeça como uma faísca junto com um enorme sorriso: quero ser piloto de avião!

Lhaisa Andria - membro do Grupo Gauche de Literatura

(Lhaisa Andria, conquistou o Prêmio Cataratas de Contos e Poesias, categoria conto, segundo lugar geral e Prêmio Revelação de Foz do Iguaçu em 2005, com este conto.)
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7 comentários:

Louise Mira disse...

Genial! Quem nunca passou por isso na infância?

sucesso!

http://www.rosas-inglesas.blogspot.com/

Fernanda Fernandes Fontes disse...

Que belo conto! Ah, como é bom ser criança..um dia somos hérois, no outro pilotos...e um dia adultos! Muitas vezes sem o sabor e a cor de fantasias infantins que tornam a vida mais prazerosa. POr isto escrevo. Para que não mora a criança em mim. Mesmo que meus versos não sejam tão puros e inocentes como elas... mas minha fantasia me torna feliz...assim como as crianças...

Adorei este espaço. Quando tiverem um tempo, passem lá tb...

http://degustacaoliteraria.blogspot.com/

Abraços!

humor lecal disse...

Caraca belo conto
Parabéns pelo blog e a Lhaisa pelo conto :)

Kaah disse...

e feesta, é só um diaa,.
intercâmbio não, êu posso aprender muuitas coisas, INESQUECÍVEIS *-*
-torcendoprosmeuspaisaceitarem'

-

seeu blog é muuuuuuuuuito foda !
amei. gameeey !

Cássia disse...

Parabéns! O texto é ótimo, flui muito naturalmente. Gostoso de se ler

Fernando Gomes disse...

As vezes eu queria ter essa animação que as crianças tem... meio que um desvínvulo total com o mundo real, pensando apenas no que trará felicidade em um curto espaço de tempo...

ótimo conto.

Anônimo disse...

L-chan!

sugoi né!

e vc na foto tá sorrindo demais! xD

e tá de aparelho!
xD

uooo

esse conto, vou fazer quadrinho dele, e vc ganhará mais premios ainda com ele!

xD

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